domingo, 10 de novembro de 2013

A CONSTITUIÇÃO DE 1967: estratégia política de "legitimação" do regime militar

"Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice De vinho tinto de sangue Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice De vinho tinto de sangue Como beber dessa bebida amarga Tragar a dor, engolir a labuta Mesmo calada a boca, resta o peito Silêncio na cidade não se escuta De que me vale ser filho da santa Melhor seria ser filho da outra Outra realidade menos morta Tanta mentira, tanta força bruta" (Chico Buarque)
A Constituição de 1967 sucedeu a de 1946, que na prática já não existia desde 31 de março de 1964, quando se verificou o golpe militar. A Carta Magna de 1967 surgiu em um contexto especial, quando o estado brasileiro se encontrava sob o jugo de um regime militar, que se valendo do pretexto de eliminar a influência comunista do país e reorganizar a economia, deixava-se dominar por interesses norte-americanos. A evidência dessa submissão ficou patente com a assinatura, em fevereiro de 1965, do Acordo de Garantia de Investimento - já rejeitado no governo do presidente Goulart -, apesar da inconstitucionalidade frente à Constituição de 1946. A esse respeito é oportuno o comentário de Pereira (1967, p.312-313): “Sem considerar as razões de ordem econômica e política, havia razões para o Ministério da Fazenda de João Goulart, o Prof. San Tiago Dantas, rejeitar na época o Acordo de Garantia de Investimento, ou seja, sua inconstitucionalidade gritante frente à Carta de 1946, o que foi muito oportunamente recordado pelo jornalista Hermano Alves, em artigo ‘Golpe Final’, no Correio da Manhã” de 10 de fevereiro de 1965. Aquelas e outras violações da Constituição tivemos oportunidade de assinalar num artigo escrito para a revista Civilização Brasileira, Rio, no. 2, p.113. O Acordo foi ratificado pelo Congresso Nacional, em forma tumultuada e com acusações de suborno e, diante da conjuntura política destes anos, impunha-se, não adaptar o Acordo de Garantia de Investimento à Constituição Brasileira, mas essa ao Acordo.”
Foi nesse clima de agitação que se deu a votação da Constituição de 1967. A conjuntura era especial. A elaboração do anteprojeto da Carta Magna fez-se por intermédio de um grupo de pessoas indicadas pelo Chefe do Executivo, agindo, segundo Pereira, “... como quem encomenda uma roupa a uma alfaiataria sem dar as medidas”, cujos propósitos estavam totalmente desvinculados do interesse da maioria. Como mostrado, o governo central estava comprometido com os interesses norte-americanos, o que o fez abraçar a causa do Projeto Aliança Para o Progresso, tendo como objetivo primeiro permitir a interferência do governo americano nas questões nacionais, fato concretizado com a presença de americanos nos principais órgãos do governo e a necessidade de sua anuência para o deferimento de operações de crédito de valor acima de US$ 100.000,00, mesmo efetuadas por bancos oficiais brasileiros a firmas brasileiras.
Parece mesmo que a influência dos americanos contaminou o regime militar. Afirma Pereira (1967, p.321) que: “cada um dos ministérios militares mantém andares inteiros e dependências em quartéis e bases navais e aéreas reservadas a norte-americanos, [...] as instruções para pedidos de financiamentos em certos bancos oficiais esclarecem, sem qualquer constrangimento, que os pedidos de empréstimos acima de cem mil dólares (US$ 100.000,00), em cruzeiros, mesmo efetuados por esses bancos oficiais brasileiros a firmas brasileiras, deverão receber o consentimento do governo norte-americano, através de sua Agência Internacional de Desenvolvimento (AID).” A votação do anteprojeto da Constituição foi precedida de uma série de interferência do Poder Executivo no Congresso Nacional. Além das cassações de parlamentares, das ameaças de novas cassações, do prazo curtíssimo para a sua votação - de apenas quarenta e três dias -, registraram-se também muitas intimidações. Era propósito do governo preservar as garantias dos investidores estrangeiros, bem como ampliar as prerrogativas do Executivo, enfraquecendo o Legislativo e o Judiciário. Foi nesse clima de terror que se fez a Carta Magna de 1967. O propósito era usar-se a Constituição como uma estratégia para legitimar a ditadura militar. A Constituição de 1967, nas palavras de Pereira (1967, p.350-351), é a grande vergonha do povo brasileiro. Afirma, com base no Diário do Congresso Nacional do dia 24 de janeiro de 1967, que a aludida Carta Magna sequer foi votada: “O Presidente Costa e Silva não foi eleito na vigência da Carta de 1967. Não está obrigado a aceitar as algemas que o diktat da Aliança Para o Progresso lhe pretendeu impor. O Povo Brasileiro não poderá sofrer a vergonha de voltar, em 1967, aos idos de 1902 e aceitar, em vez de uma Constituição, um Estatuto de Capital Estrangeiro que nem sequer está subscrito pelos deputados e senadores. Ninguém quis assiná-lo. Foi promulgado pelas Mesas do Congresso, contrariando a tradição do Direito Constitucional Brasileiro. Em toda a História do Brasil, nossas constituições foram subscritas pelo Poder Constituinte, fosse o Imperador, fosse Getúlio Vargas em 1937, sempre foi o Poder Constituinte que subscreveu as Cartas Políticas. Em 1967, ninguém quis referendá-la. Todos exprimiram sua repulsa, pela forma que a pressão política autorizava a um congressista exprimir-se. Cerca de 106 representantes, dados como integrantes da maioria, antes mesmo de promulgada a Constituição, assinaram um compromisso de colocá-la abaixo. Nossa cultura, nossas tradições, nossos sentimentos de Liberdade, Direito e Justiça, em 145 anos estamos desligados da situação de colônia, não admitem que regressemos a essa postura política.” Em nome de todos os que morreram pela nossa independência, urge que continuemos lutando pela liberdade de nossa Pátria. Com o Ato Institucional no. 05, de 13 de dezembro de 1968, a Constituição de 1967 foi profundamente modificada, quando restringiu as prerrogativas do Poder Legislativo e instituiu medidas rigorosas de defesa da ordem institucional, tudo sob o pretexto de assegurar a continuidade dos ideais e princípios da Revolução de 1964, comprometidos por processos subversivos e de guerra revolucionária.

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