sábado, 8 de março de 2014

JUSTIÇA DO AMAPÁ BLOQUEIA MAIS DE 3 MILHÕES E 100 MIL REIAS DE MULTA DA CONTA DO FPE POR DESCUMPRIMENTO DE DECISÃO JUDICIAL




Ninguém desconhece que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem reforçando o papel das astreintes no sistema jurídico brasileiro. A jurisprudência mais recente do Tribunal tem dado relevo ao instituto, que serve para coibir o adiamento indefinido do cumprimento de obrigação imposta pelo Poder Judiciário. As astreintes são multas diárias aplicadas à parte que deixa de atender decisão judicial.

A questão que se discute no presente não se refere à legalidade da estipulação da multa diária, que de conformidade com o art. 461 do CPC, “Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer, o Juiz concederá a tutela específica da obrigação de fazer ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento. E isso, em determinadas circunstâncias, tão somente é possível viabilizar mediante a estipulação de multa diária, nos exatos termos do §4º deste artigo, que afirma:

§4º. O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para o cumprimento do preceito.

Vê-se que a estipulação da multa diária tem previsão legal de caráter pedagógico. Segundo o STJ, “se o único obstáculo ao cumprimento da decisão judicial é a resistência ou descaso da parte condenada, o valor acumulado da multa não deve ser reduzido. Por esse entendimento, a análise sobre o excesso ou adequação da multa não deve ser feita na perspectiva de quem olha para os fatos já consolidados no tempo, depois de finalmente cumprida a obrigação. Não se pode buscar razoabilidade quando a origem do problema está no comportamento desarrazoado de uma das partes, afirmam os votos orientadores.”

 O que se questiona, no entanto, diz respeito ao amparo legal para que um Magistrado determine o bloqueio de recursos de contas da Fazenda pública, de montante elevadíssimo, no caso R$ 3.110.000,00 (três milhões, cento e dez mil reais), antes mesmo da prolação da sentença definitiva. Em assim sendo, essa decisão apresenta vícios de ilicitude e fere princípios constitucionais. Se não houve o trânsito em julgado, e sequer há sentença definitiva nos autos do processo, tal decisão é injustificável. Mesmo considerando a existência de uma sentença definitiva e com trânsito em julgado, não é possível proceder-se a execução da Fazenda Pública por esse viés, tendo em vista que esta se realiza com base no art. 730 do CPC, que define que “Na execução por quantia certa contra a Fazenda Pública, citar-se-á a devedora para opor embargos em 30 (trinta) dias; se esta não os opuser, no prazo legal, observar-se-ão as seguintes regras:   

I – o juiz requisitará o pagamento por intermédio do presidente do tribunal competente;
II – far-se-á o pagamento na ordem de apresentação do precatório e à conta do respectivo crédito.

Registre-se que tão somente há exceção da regra do inciso II nos casos das requisições de pequenos valores, que no Estado do Amapá estão fixadas em 10 (dez) salários mínimos. Fora desse parâmetro, todos os demais pagamentos sujeitar-se-ão à expedição de precatórios por força do que dispõe o art. 100 da Constituição Federal. Senão vejamos:    

Art. 100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.

Pelo exposto, constata-se a ausência de amparo legal para a decisão de 21 de fevereiro de 2014, que determina “Nos termos da Portaria nº 001/2009, .... intime-se a parte ré/Estado do Amapá para, no prazo de 15 dias, manifestar-se sobre o bloqueio ‘on line’ BacenJud, de R$ 3.110.000,00 (três milhões e cento e dez mil reais).”

Decisões controversas dessa natureza levaram o STF, acertadamente, a reconhecer em processo a repercussão geral, a fim de discutir os limites das decisões judiciais sobre políticas públicas de saúde.

A definição a ser dada pelo Supremo Tribunal Federal será muito oportuna. É bem verdade que todos os cidadãos, de acordo com o artigo 196 da Constituição Federal, têm direito à Saúde Pública de qualidade. No entanto, não é razoável a interferência exacerbada do Poder Judiciário, que em decisões individuais privilegia alguns em detrimento da coletividade. 

As relações de autonomia e independência entre os Poderes têm sofrido abalos em razão da extrapolação dos limites da competência de cada um. O que se vê hoje é a interferência do Judiciário nas ações próprias do Executivo, tais como: a construção de hospitais, contratação de pessoal, compras de equipamentos e medicamentos, realização de cirurgia, transporte de pacientes para tratamento fora do domicílio, etc. Não raras vezes, o bloqueio de dinheiro das contas dos entes federados, sem o devido conhecimento da destinação dos recursos confiscados, compromete, quase sempre, os fins para os quais foram destinados.  

A manifestação do Supremo Tribunal Federal quanto à matéria é primordial para evitar equívocos e questionamentos a respeito. Eis a seguir a notícia veiculada na data de 21 de fevereiro de 2014 no site do STF:   

“O Poder Judiciário pode obrigar o Poder Executivo a implementar políticas de saúde em benefício da população ou isso é uma interferência de um Poder republicano sobre outro? A controvérsia será debatida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 684612. O recurso foi interposto pelo Município do Rio de Janeiro contra o Ministério Público estadual, que ajuizou ação civil pública para obrigar a prefeitura a tomar providências administrativas para o funcionamento do Hospital Municipal Salgado Filho, localizado no bairro do Méier, na capital carioca. 
Por meio de deliberação no Plenário Virtual do STF, os ministros, por maioria, consideraram que a matéria transcende o interesse das partes envolvidas e reconheceram a existência de repercussão geral  do tema, que discute, especificamente, os limites do Poder Judiciário para determinar obrigações de fazer ao Estado, consistentes na realização de concursos públicos, contratação de servidores e execução de obras que atendam ao direito social da saúde, previsto na Constituição.
No recurso, o MP-RJ alega estar previsto no artigo 129 da Constituição Federal sua atribuição em cobrar do Estado que promova condições de acesso do cidadão à saúde. Com base nisso, o Ministério Público apresentou a ação civil pública a partir de relatório do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (Cremerj) sobre as condições da estrutura e do atendimento no Hospital Municipal Salgado Filho.
Entre os pedidos formulados na ação, o MP-RJ requereu que a Prefeitura do Rio fosse obrigada a realizar concurso para contratar 79 médicos de várias especialidades, 3 dentistas, 89 enfermeiros e 112 técnicos e auxiliares de enfermagem, sob pena de multa diária no valor de R$ 5 mil, e que corrigisse as irregularidades expostas no relatório do Cremerj. O juízo de primeira instância julgou improcedente os pedidos, mas o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), ao julgar apelação interposta pelo MP, reformou  decisão.
No STF, a Prefeitura sustenta que é um equívoco a decisão do TJ-RJ no sentido de que o Poder Judiciário pode obrigar o Executivo à observância do direito fundamental à saúde. Sustenta ainda que a Corte fluminense permitiu que o Ministério Público estadual invadisse a seara de atos discricionários que ensejam a contratação de pessoal, bens e serviços pela administração pública municipal, “ao arrepio da competência que o artigo 84, inciso 11, da Constituição da República, confere ao chefe do Poder Executivo para o exercício da direção superior da administração, bem como da indispensável autorização orçamentária”.

Manifestação:

Em manifestação pelo reconhecimento de repercussão geral da matéria, a relatora do RE, ministra Cármen Lúcia, afirmou que ‘a discussão sobre os limites do princípio da independência entre Poderes, quanto à adoção de providências relativas a políticas públicas para implementação de direitos e garantias previstos na Constituição da República, tem sido submetida, de forma reiterada, à análise deste Supremo Tribunal Federal’.
Ela acrescentou que a matéria assemelha-se ao objeto de outros recursos extraordinários pendentes de julgamento de mérito, cuja repercussão geral foi reconhecida pelo Plenário Virtual do STF.
Ela destacou que está presente no caso a relevância jurídica e social da matéria, além da transcendência da questão, uma vez que, ‘no Estado brasileiro, a inexistência de condições satisfatórias na prestação do serviço de saúde, notadamente para as camadas sociais menos favorecidas, não é peculiaridade deste caso, o que torna a controvérsia recorrente nos tribunais do país’.”

            É bem verdade que a saúde pública no Brasil é preocupante, precisando melhorar muito, e urgentemente. E isso é fato. É real. Ninguém desconhece. E muito precisa ser realizado para que o cidadão que depende do atendimento da rede pública de saúde seja atendido com presteza e dignidade. No entanto, com esse tipo de artifício, estipulando multas elevadas, para depois bloquear as contas do ente público não resolve a deficiência. Com esse procedimento, além de onerar demasiadamente a Fazenda Pública, alguns são favorecidos em detrimento da sociedade, que não tem acesso a advogados, e muito menos à Justiça. O serviço público de saúde precisa ser melhorado, sim, mas em proveito de todos, sem exceção.

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